De D Sebastião a Lula - 500 anos do messias
Luiz Sérgio Canário
No século XVI o rei de Portugal, D. Sebastião, parte em uma
cruzada rumo a Terra Santa para toma-la dos Mouros. Seu exército é dizimado e
ele e grande parte da nobreza morrem. Portugal mergulha em uma enorme crise e
acaba sendo governado pelo Rei da Espanha. A partir daí cria-se a lenda, mais
um mito messiânico, que ele não morreu, o corpo não foi encontrado, e somente
estava esperando a hora certa para voltar e libertar o povo português do
domínio espanhol. Esse mito perdurou, e em certo sentido ainda perdura, em
Portugal por séculos: o povo português seguiu esperando pela volta de D
Sebastião para recolocar Portugal nos eixos como um grande reino.
Em paralelo de quase
500 anos, o acontecido foi em 1578, a volta de Lula à presidência vem sendo
tratada por muita gente boa, inclusive por uma parcela significativa da classe
trabalhadora, meio como o retorno de D Sebastião ao trono português. Todas as
glorias serão restauradas e todos os mal feitos desfeitos. Como conta a
história de Portugal, D Sebastião nunca voltou. E o grande reino de Portugal
nunca mais foi o mesmo.
Claro que Lula não é D Sebastião. E menos ainda o Brasil o
Portugal do século XVI, não custa lembrar. Assim como as eleições de 2018 não
são o resgate do grande Brasil e a extinção de todos os males em um passe de
mágica.
Em certo sentido estamos nesse momento como o povo português
naquela época: meio sentados esperando a volta da pessoa que certamente virá e
que resolverá todos os problemas do Brasil, do PT, das esquerdas, acabará com
todo retrocesso legal e institucional e retomará a história do ponto em que ela
parou em 2015/2016. Isso não acontecerá dessa maneira.
Lula e o PT voltando ao governo central muda a correlação de
forças institucionais. Voltaremos a governar com todas as implicações, as boas
e as ruins, que isso traz. Isso é o suficiente? Não. Como na matemática, é
condição necessária, mas não suficiente.
A primeira questão é: com que programa iremos governar? Com
um programa subordinado às vontades e gostos do capital financeiro
internacional e de uma insipiente e subordinada burguesia nacional? De novo com
uma política macroeconômica focada na geração de superávits fiscais? Essa é uma
discussão que tem gente que foge rápido pela tangente: primeiro a gente ganha
as eleições, depois a gente vê como governa. Mas como ganha as eleições? Com
marketing pesado? E de onde virá o dinheiro para isso? Com os Renams e Jacksons Barretos? De novo?
Estamos presos em duas armadilhas: uma do tempo e outra política.
Como atravessar o tempo até 2018? O que teremos que
enfrentar ao longo desse tempo? Lula atravessar todos esses meses como
candidato não é uma tarefa fácil. São dois anos de bombardeio cerrado e nada
tem abalado a popularidade dele. Mas até onde isso vai? Não há no horizonte
nenhum candidato que possa fazer sombra a ele. Mas há tempo para surgir uma
surpresa. E certamente não será uma boa surpresa. Do mato da esquerda não sai
coelho e do da direita se sair será um monstro.
Outra varável é que há bastante tempo para Moro condena-lo
algumas vezes mais. E como será o comportamento do TRF4? Segurar o julgamento
até que a condenação não afete mais o candidato? Pela velocidade com que o recurso à condenação
saiu de Curitiba para Porto Alegre, foi enorme e pouco usual, um recorde,
parece que não. Não é muito provável que sejam eles os responsáveis por
desmontar toda uma articulação de anos para desmoralizar Lula e impedir que ele
seja candidato. Um cenário possível é eles deixarem para condenar em uma data
que inviabilize mobilizações e recursos judiciais que modifiquem a sentença.
O vigor físico de Lula também é um fator que pode pesar. Ele
já passou dos 70 anos. Mesmo estando com a saúde perfeita, o vigor pode não ser
o mesmo de suas campanhas anteriores. A Caravana Nordeste é uma forte demonstração
do seu vigor físico, mas uma campanha de mais de um ano será uma pedreira. Essas
são questões que o passar do tempo não ajuda.
Nesse momento os focos da movimentação de Lula e do PT são:
principalmente sua eleição, o combate ao golpe e ao governo de Temer. Há hoje
uma enorme coalizão de interesses ao redor do governo. Uma coalizão completamente
fisiológica. Todos estão em maior ou menor grau na base do governo. E todos
estão lá porque estão ganhando alguma coisa que somente o governo pode
oferecer: dinheiro e poder de gerar dinheiro para suas bases eleitorais. Há
muita divisão de interesses na base do governo. Isso leva a posições estranhas
como a do PSDB que uma parte fala em sair da base e outra fala que não deixa os
cargos de maneira nenhuma.
Mas com a proximidade das eleições esse quadro deve mudar.
Certamente uma parte dessa base de alguma maneira vai querer bater no governo,
o mais impopular da história, por razões eleitorais. Já há notícias de
políticos do nordeste querendo se afastar do governo em função da crescente popularidade
de Lula por lá. A caravana, com os Renams e Barretos nos palanques, é uma
demonstração disso. Pouco provável que vá haver algum candidato que defenda o
governo ou que queira ser apoiado por Temer. Isso pode estreitar o caminho de
Lula e do PT como oposição a um governo que ninguém vai querer perto. E também
pode dar espaço para o surgimento de algum “opositor” que se fortaleça com uma
abordagem à direita do PT. Defendendo o legado das “reformas”, mas batendo na
corrupção, na roubalheira e na falta de rumo do governo Temer. Certamente
haverá espaço para isso. A questão é: quem o fará.
Uma dificuldade também será a política de alianças
eleitorais e depois para governar. Qual será nossa aliança? O famigerado tempo
de TV será obtido a que custo? Mais uma vez com alianças oportunistas que
depois cobram a fatura do governo? Há condições de se unir ao menos os setores
mais progressistas, que defendem manter e ampliar conquistas sociais, e boa
parte da esquerda à campanha? Digamos que sim. Como isso iria se expressar? A
criação de um novo partido de centro que atraísse esses setores progressistas?
Admitindo que haja políticos desse espectro no PSB, PMDB, PDT e até mesmo no
PSDB, como seria esse apoio se os partidos, exceto talvez o PDT, nem pensa em
apoiar Lula? Apoios pessoais não dá tempo de TV e na medida que a pessoa apoia
uma coisa e o partido a que ela está filiada outra, confunde.
O presidente do PT do Rio, Quaquá, lançou um texto
emblemático e revelador: Lula e o PT devem criar um partido lulista de centro
direita para chamar de seu! Como ninguém pensou nisso antes? Não satisfeito ele
chama Lula de divindade e de Messias. Muito além de D. Sebastião, coitado.
Esse texto não é um acidente, uma aberração exposta por um
inconsequente. Ele expressa com tintas muito fortes a visão do Lula Messias.
Aquele que além de unificar a esquerda também vai unificar a direita. O que vai
nos retransportar para o Éden, para o Paraíso de onde os golpistas maus nos
tiraram a pontapés. E Quaquá não é um qualquer. Ele não acordou um dia e
resolveu que escreveria asneiras. Não. Ele, talvez expressando o pensamento de
muita gente boa do PT, realmente pensa isso. Por incrível que possa parecer é
esse tipo de construção estratégica que domina o partido: vamos seguir
resolvendo as coisas por cima, no parlamento. A classe trabalhadora? Na hora
certa ela vota em Lula, o Messias, e tudo bem, cumpriu o seu papel histórico.
Lula seguramente é o maior líder popular que esse país já
teve. E também o melhor presidente. E por isso defender sua candidatura e
trabalhar por sua eleição é a materialização da nossa tática: derrotar os
golpistas e cortar as nossas amarras com o neoliberalismo. Expressa o fora
Temer, a derrota do golpe, a derrota do projeto neoliberal de extinguir todas
as conquistas sociais do último período e repor o PT no comando do Executivo
Federal. Com todas as implicações que isso tem.
A Caravana pelo Nordeste de Lula dos últimos dias demonstra
não somente sua capacidade eleitoral, mas também a visão dele como o D.
Sebastião que irá restaurar nossa glória. Aquele povo que o está recebendo não
recebe apenas um líder popular, o maior de todos, o político candidato a
Presidente. Recebe também nosso D. Sebastião, recebe a esperança na restauração
de um tempo em que “as coisas” eram melhores. E “as coisas” de fato eram
melhores. Mas não podemos permitir que a história se repita. A dualidade
tragédia e farsa está aí para nos ensinar. Temos por obrigação de construir
outra história. A realidade concreta é outra.
Não podemos querer ter um Lula reposto na presidência do
país como um grande líder popular e político que prepare e coloque os
trabalhadores e o povo na defesa de um projeto socialista de poder e
entregarmos a esses trabalhadores um D. Sebastião que com seu simples retorno
resolverá todos os nossos problemas, fazendo com que “as coisas” voltem a ser
boas.
Nós temos a oportunidade de com Lula voltarmos a ter o
comando da máquina pública e do governo federal. Mas, se quisermos fazer
diferente e consolidar um governo que crie mecanismo de defesa das suas conquistas,
precisamos de uma estratégia nova, socialista e clara, que nos dê a direção que
precisamos ir. E assim pensar a nossa política de alianças para ganhar as
eleições e para poder governar. Alianças táticas com objetivos claros. E não
fazer dessas alianças o nosso objetivo estratégico e sonhar com um Brasil com
dois partidos lulistas e controlados por Lula, o PT e um à direita.
Vamos voltar ao governo federal apoiados pela classe
trabalhadora e pelo povo. E com um programa de governo que conserte o estrago
que está sendo feito. Um governo que além de melhorar as condições de vida e
trabalho do povo nos prepare para defender as conquistas e os avanços. Que feche
os espaços de uma retomada do projeto neoliberal. Um governo e um governante
munidos de uma estratégia clara e solidamente comprometida com a construção da
alternativa socialista.
A movimentação de Lula nos braços do povo do Nordeste essas
últimas semanas demonstra a aposta do povo e dos trabalhadores no seu Partido e
no líder desse partido. Vamos construir uma campanha, uma política de alianças
e um programa de governo que correspondam a essa aposta.
Luiz Sérgio Canário
Engenheiro e militante do PT em São Paulo
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